quinta-feira, julho 19

Val Paraíso


Val Paraíso é o nome que se dá a um lugar muito bonito no Chile, com praias belas e casarões luxuosos. Mas onde eu moro é diferente: um condomínio, em João Pessoa, com blocos que vão do A ao J, em que cada um deles tem quatro andares e vinte e dois apartamentos por andar. Sendo assim, 88 por prédio. Fazendo as contas, são 880 moradias. E se formos pensar que cada uma delas tenha, no mínimo três pessoas, são 2640 habitantes. As quais dividem uma área de lazer, com duas piscinas e uma quadra poliesportiva, nos fundos do condomínio.

A distância entre um bloco e outro é de, aproximadamente, 10 metros e todos os prédios foram feitos exatamente iguais. O apartamento onde eu moro, 303 do bloco E, fica em frente a outro idêntico a ele. Os do lado direito e esquerdo também são do mesmo jeito. Assim como os do prédio ao lado. Todos tem varadas voltadas de frente umas as outras nas laterais dos blocos. Dado isso, não há privacidade alguma, nem em sequer tomar um ar fresco sem ser fitada pelos olhos curiosos de um vizinho do prédio ao lado.

Durante o dia, as crianças correm nos corredores, brincam de pega, de esconde-esconde, de bola. A síndica sempre reclama, diz que no térreo há uma área de lazer infantil. O que é verdade, mas as mães não deixam os filhos descerem sozinhos. Então a diversão mais acessível é ali mesmo, com reclamação e tudo. E que se danem os vizinhos que querem estudar pra concursos, vestibulares, ou provas letivas. E já que eu não pude vencer o inimigo, resolvi me aliar a ele. Então deixo minha filha brincar no corredor também.

Só no silêncio da noite se tem paz! As crianças e os briguentos descansam. Fujo para a varanda, de onde tenho uma visão da rua quieta. Ao meu ver, quase todos dormem. Exceto um vizinho do terceiro andar do bloco ao lado, que assiste televisão. Da minha sacada eu vejo as luzes da tela refletindo nas paredes brancas. Também ouço duas pessoas conversando alto no mesmo prédio, um pouco mais afastadas. Agora passa um moço de bicicleta na rua deserta.

Nesse momento, chega à garagem um carro vermelho com o som tocando um brega em portunhol. O motorista desce e resolve cantar um pouco, acompanhando a música. A tranquilidade se foi, mas a mim isso não incomoda. Somente porque agora eu estou acordada. São quase duas da madrugada e “Sois nada mais do que uma mera ilusão” dizem os versos melancólicos e “A luz do cabaret já se apagou”. Agora um homem aparece na sacada do apartamento do primeiro andar ao lado. Não sei se incomodado, olha em direção ao barulho. “Ai, ai, ai, ai, amor. Eu sou o satélite e você o Sol”, toca outra música e o dono do carro, audivelmente embriagado, a cantar junto à música. Percebo que o homem da sacada ao lado está irritado e olha em direção à portaria do meu prédio. Devo acordar a síndica e reclamar? Não foi preciso, minutos depois o bêbado resolve se recolher, sem demais confusões.

Em alguns meses, se meus planos derem certo, irei me mudar. Mas não vou sair do Val Paraíso. Acho que me acostumei com os olhares curiosos e até mesmo eu já aderi a tal hábito de espiar. Não por mera curiosidade. Mas por reconhecimento da semelhança. De fato, mudam os números, mudam os blocos, mas o CEP é o mesmo. Somos todos iguais, as mesmas histórias. 

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