quinta-feira, agosto 16

Meu desabafo


Em um instante de solidão, me encostei sentada no chão da varanda, abraçando as pernas unidas, escondendo meu rosto entre as dobraduras do meu braço esquerdo. Afastei a face do braço por um segundo, as lágrimas escorreram. Chorei sozinha sem ser percebida. Não sei dizer ao certo o que passava na minha mente, mas era uma grande mistura de insegurança, impotência e incompreensão. Tanto desvelo, tanta incerteza de um futuro, tantos fatos percorridos em uma velocidade espantadora. Minha mente trabalha na velocidade da luz e quase não descansa.

Nesse dia meu companheiro estava em casa, mas de tão súbita que minha melancolia foi, ele nem sequer notou minha voz inebriada, já disfarçada por um banho quente e imediato. Não sei o que se passa. São tantas coisas ao mesmo tempo e tantas dúvidas. A ansiedade tem me consumido. Penso em escrever, começo um ensaio, discorro a cerca de algo. Mas esbarro no sempre presente fantasma da autocrítica exacerbada. Tento explicar o motivo de ser assim, taciturnamente disfarçada de um sorriso. Busco em meus pais algo que possa indicar minha descendência. Mas nada é plausível, nada se encaixa. Sinto que tenho mais em comum com as Clarices e as Virgínias desse mundo a fora do que com meus ancestrais. Nasci assim, com essa sensação de incompletude, tentando preencher esse espaço fazendo tudo na mesma hora. E quando penso que não, já criei um novo monstro, já me amarrei numa cama de gato difícil de sair.

Tenho sido sempre assim. Não é um problema com os outros, é um problema comigo mesma. Uma dificuldade enorme de aceitação, de acreditar em mim mesma. Por não confiar em mim, distraio minha atenção para qualquer coisa que me ponha longe do meu auto-julgamento. Onde moro, o que não faço, como o tempo voa, como me cobro por não conseguir uma mudança de hábitos, dos móveis da minha casa, nada disso passa pela cabeça de ninguém. O possível apartamento para alugar, uma quase impossível compra de imóvel, um carro que vai sair da oficina, o barulho dos vizinhos. O desemprego, a greve da universidade, minha falta de atividade, minha obrigações domésticas. Um furacão de problemas. Minha filha, meu companheiro, meus pais, minhas irmãs presentes virtualmente, meus irmãos distantes não sabem o que se passa. Sinto uma falta enorme da pessoa que mais me dá suporte, ausentada agora, mais que tudo, por motivos de trabalho. Nesse instante que redijo esse desabafo já não posso conter as lágrimas. E se um dia algo de trágico vir à tona, que tenho tentado evitar com todas as minhas forças, digo que minha capacidade de absorção se extinguiu. 

quinta-feira, julho 19

Val Paraíso


Val Paraíso é o nome que se dá a um lugar muito bonito no Chile, com praias belas e casarões luxuosos. Mas onde eu moro é diferente: um condomínio, em João Pessoa, com blocos que vão do A ao J, em que cada um deles tem quatro andares e vinte e dois apartamentos por andar. Sendo assim, 88 por prédio. Fazendo as contas, são 880 moradias. E se formos pensar que cada uma delas tenha, no mínimo três pessoas, são 2640 habitantes. As quais dividem uma área de lazer, com duas piscinas e uma quadra poliesportiva, nos fundos do condomínio.

A distância entre um bloco e outro é de, aproximadamente, 10 metros e todos os prédios foram feitos exatamente iguais. O apartamento onde eu moro, 303 do bloco E, fica em frente a outro idêntico a ele. Os do lado direito e esquerdo também são do mesmo jeito. Assim como os do prédio ao lado. Todos tem varadas voltadas de frente umas as outras nas laterais dos blocos. Dado isso, não há privacidade alguma, nem em sequer tomar um ar fresco sem ser fitada pelos olhos curiosos de um vizinho do prédio ao lado.

Durante o dia, as crianças correm nos corredores, brincam de pega, de esconde-esconde, de bola. A síndica sempre reclama, diz que no térreo há uma área de lazer infantil. O que é verdade, mas as mães não deixam os filhos descerem sozinhos. Então a diversão mais acessível é ali mesmo, com reclamação e tudo. E que se danem os vizinhos que querem estudar pra concursos, vestibulares, ou provas letivas. E já que eu não pude vencer o inimigo, resolvi me aliar a ele. Então deixo minha filha brincar no corredor também.

Só no silêncio da noite se tem paz! As crianças e os briguentos descansam. Fujo para a varanda, de onde tenho uma visão da rua quieta. Ao meu ver, quase todos dormem. Exceto um vizinho do terceiro andar do bloco ao lado, que assiste televisão. Da minha sacada eu vejo as luzes da tela refletindo nas paredes brancas. Também ouço duas pessoas conversando alto no mesmo prédio, um pouco mais afastadas. Agora passa um moço de bicicleta na rua deserta.

Nesse momento, chega à garagem um carro vermelho com o som tocando um brega em portunhol. O motorista desce e resolve cantar um pouco, acompanhando a música. A tranquilidade se foi, mas a mim isso não incomoda. Somente porque agora eu estou acordada. São quase duas da madrugada e “Sois nada mais do que uma mera ilusão” dizem os versos melancólicos e “A luz do cabaret já se apagou”. Agora um homem aparece na sacada do apartamento do primeiro andar ao lado. Não sei se incomodado, olha em direção ao barulho. “Ai, ai, ai, ai, amor. Eu sou o satélite e você o Sol”, toca outra música e o dono do carro, audivelmente embriagado, a cantar junto à música. Percebo que o homem da sacada ao lado está irritado e olha em direção à portaria do meu prédio. Devo acordar a síndica e reclamar? Não foi preciso, minutos depois o bêbado resolve se recolher, sem demais confusões.

Em alguns meses, se meus planos derem certo, irei me mudar. Mas não vou sair do Val Paraíso. Acho que me acostumei com os olhares curiosos e até mesmo eu já aderi a tal hábito de espiar. Não por mera curiosidade. Mas por reconhecimento da semelhança. De fato, mudam os números, mudam os blocos, mas o CEP é o mesmo. Somos todos iguais, as mesmas histórias.